15 de jan. de 2011

1ª PARTE: JESUS PROCLAMA O REINO DE DEUS E PREPARA A IGREJA (caps. 3-16)


Jesus, inserido no povo de Israel pelo seu nascimento e graças a José, e por meio da sua missão manifestada por João, vai assumir sobre Si a história desse povo e, do deserto, o conduzirá ao Reino de Deus. Por isso, em Mt 4, 17, Jesus proclama que o Reino está próximo.


Prólogo 2 - João Baptista e Jesus (Mateus 3-4,11)

A narração da vida pública de Jesus é introduzida (também em Marcos e Lucas) por três quadros: pregação de João, baptismo de Jesus e tentação de Jesus. José e João Baptista desempenharam o seu papel na preparação de Jesus. José, homem “Justo”, inseriu Jesus na história do povo de Israel dando-lhe o seu próprio nome, levando-o ao Egipto para que se cumprisse um novo Êxodo e designando-O como “salvador” através do Seu nome (Jesus significa “Deus salva” ou “Deus salvador”). João Baptista, cumprindo toda a “justiça”, permitiu a Jesus, pelo baptismo, manifestar a Sua missão para o povo de Israel.


Mateus 3, 1-6: Pregação de João Baptista
Mateus 3, 7-12: Apelo de João à conversão

Tanto João Baptista como Jesus, apesar de tão diferentes, vão realizar a mesma função: ambos são enviados por Deus para mostrar aos homens o caminho da salvação: os seus ministérios seguem um caminho paralelo e os seus discípulos continuarão depois da morte do Mestre, e até com alguma rivalidade, que termina quando as comunidades cristãs dão continuidade ao ministério de Jesus, reconhecendo a plenitude e cumprimento da pregação de João na pessoa de Jesus Cristo.
A diferença entre o Precursor e “Aquele que vem depois” (Mt 3, 11) é sublinhada pelo evangelista: João “baptiza em água para os mover ao arrependimento”. Jesus “baptizará no Espírito Santo e no fogo” (Mt 3, 11). O Espírito é o vento que escolhe o bom e que dá a vida (Mt 28, 19), o que mostra a radicalidade do Baptismo de Jesus em face do simples baptismo na água, que é um baptismo de conversão.
Esta passagem apresenta uma estrutura tripartida:
v. 1-4 => bilhete de identidade de João Baptista: mensagem, enraizamento na Bíblia e modo de vida;
v. 5-7 => resumo da actividade de João Baptista;
v. 7-12 => catequese de João, que se divide em duas partes:
1ª parte: v. 7-10 – rejeita a identidade judaica dos “filhos de Abraão” como salvo-conduto frente ao julgamento de Deus;
2ª parte: v. 11-12 – sublinha o papel de Jesus (“o que vem depois de mim”) na execução deste julgamento divino.
Lendo ao ritmo do texto, por versículo:
1 - A geografia onde decorre a acção é relevante: quando Jesus vem da Galileia ter João, este exerce o seu ministério no deserto da Judeia, sendo a voz que, segundo o profeta Isaías (Is 40, 3) anuncia o novo Êxodo através do deserto. Deste ponto de vista, o rio Jordão tem uma dimensão simbólica, pois a passagem deste rio marcou a entrada na Terra Prometida (Js 3, 14-17). Assim, o baptismo no rio Jordão simboliza a entrada para uma nova vida, o Reino de Deus, através de Jesus Cristo.
2 – A palavra “Convertei-vos” encerra o convite a mudar de mentalidade e de direcção, regressando sem condições ao Deus da Aliança. Mais do que um acto de arrependimento, significa um estado de conversão a Jesus. O termo “conversão” ocorre em contextos onde se faz um convite à mudança (4, 17; 11, 20.21, 12, 41). “Reino do Céu” é equivalente a “Reino de Deus”, mas Mateus evita a segunda designação, por evitar pronunciar o nome divino. Em Jesus, este Reino torna-se mais próximo das pessoas que, por isso mesmo, são chamadas à conversão. Deus decidiu, a partir deste momento, tomar a história do povo nas Suas mãos através do Seu Filho.
3, 4 – Sendo a voz profética no deserto, João Baptista veste-se e alimenta-se à maneira dos profetas, em particular de Elias (2 Rs 1, 8), adoptando uma vida regrada e afastando-se dos costumes sociais de uma civilização considerada pecadora.
6 – O baptismo de João era conferido uma vez só e abarcava uma conversão de vida, preparando o baptismo trazido por Jesus.
7 – A cólera designa a reacção de Deus santo face ao pecado.
8 – Os frutos designam as boas obras que advém de uma conduta íntegra, sendo exigência da conversão, não podendo ser confundida com a ascendência de Abraão. Quem faz a vontade de Deus é o verdadeiro filho de Abraão. Isto põe em causa uma eleição considerada pelos judeus que os salvava automaticamente através da sua ascendência.
11 – Jesus é designado como mais poderoso que João Baptista, tanto que João refere-se ao gesto de descalçar as sandálias, gesto de um escravo perante o seu Senhor. Jesus é posto em relação com a força que se manifesta no dom do fogo do Espírito, que purifica e renova. João situa a sua missão em relação a Jesus, cuja acção será mais radical, através de um julgamento pelo fogo que purifica, o Espírito Santo, a santidade de Deus que exige a santidade do homem.
12 – A imagem da colheita do grão evoca o juízo final, momento em que a boa semente será separada do que não interessa, ou seja, a escolha de quem pode participar do Reino de Deus.

NOTA relativamente às classes sociais:
Os Fariseus eram um grupo de observantes zelosos da Lei.
Os Saduceus estavam ligados às grandes famílias sacerdotais, preocupando-se com a política.
Os Doutores da Lei ou Escribas eram os intérpretes oficiais da Torá, gozam de grande prestígio.




Mateus 3, 13-17: Baptismo de Jesus

Jesus vem da Galileia para ser baptizado por João, e apesar da resistência deste último, que é necessária para que os cristãos aceitassem que Jesus teria sido baptizado por João, Jesus fá-lo porque é a vontade de Deus. É esta atitude de humildade que permite a Jesus receber a sua investidura messiânica (3, 16-17) que o acreditará como Messias perante os futuros cristãos. Esta passagem pode ser dividida em duas partes:
=> 1ª parte: v. 14-15 – debate entre Jesus e o Baptista, em que este recusa baptizar Jesus e confessa a sua submissão; no entanto, Jesus insiste na noção de justiça;
=> 2ª parte: v. 16-17 – dá-se uma teofania – manifestação divina feita a Jesus, em que aparece o Espírito Santo e ouve-se a voz do Pai: esta teofania tem o valor da aceitação do Pai pela atitude da justa submissão adoptada por Jesus; trata-se de uma cena sem testemunhas: é Jesus quem vê o Espírito (“ele viu”); ao mesmo tempo, o evangelista procede a uma designação -  “Este é o meu Filho (…)” - que visa directamente o leitor.
Lendo ao ritmo do texto, por versículo:
15 – A “justiça” a que Jesus se refere é a fidelidade nova, obediência total à vontade de Deus. Solidarizando-se com os pecadores pelo baptismo, Jesus manifestava como a sua missão se distanciava do sonho judaico de um Messias triunfante. Antes que Jesus tome a direcção da Sua vida, está de acordo com a vontade de Deus que este Jesus marque a Sua solidariedade com aqueles que, à chamada de João (3, 2), se convertem para que o Reino de Deus chegue. É justo que os baptistas reconheçam um Messias humilde, irmão dos pecadores. Sem o saber, João terá feito o papel de tentador ao tentar desviar Jesus de se baptizar, mas Jesus, ao coagi-lo, recusa subtrair-se à solidariedade, significada pelo Baptismo, com a humanidade pecadora.
16 – Os céus abriram-se, tornando novamente possível o contacto entre o mundo celeste e o dos homens, revelando os projectos de Deus. A imagem da pomba centraliza a cena sobre Jesus. A pomba simboliza o Espírito de Deus voando sobre as águas de Gn 1, 2, evocando a nova criação iniciada na pessoa e missão de Jesus. Também está presente, nesta evocação, a passagem do mar Vermelho: “O Espírito desceu do Senhor e os conduziu (Is 63, 14). Assim, a passagem pelas águas do baptismo inaugura um novo Êxodo, pois Jesus será “conduzido ao deserto pelo Espírito” (Mt 4, 1) e aí vencerá as tentações que teve o povo de Deus. O baptismo de Jesus abre um mundo novo.
17 – A voz vinda do Céu parece dirigir-se não só a Jesus, mas a todos os presentes: trata-se de uma primeira “revelação” à gente que imediatamente vai seguir Jesus e, através desta, a todos os povos. O adjectivo “muito amado”, corresponde à palavra “único”, que lembra Isaac no episódio do sacrifício (Gn 22, 2.12.16). Ao Messsias glorioso junta-se pois a sombra do sacrifício da cruz. Lembra-nos também do Israel do deserto, sobre o qual plana a águia divina, e que é chamado “muito amado” (Dt 32, 11.15). Finalmente aquele em quem “se cumpriu” lembra o Servo profeta (Is 42, 1) sobre quem repousa o Espírito. Esta teofania revela um bilhete de identidade de Jesus: Jesus vai passar pelo deserto e abrir um novo Êxodo, para os filhos muito amados, que realizará as promessas de Deus.


Mateus 4, 1-11: Jesus tentado no deserto

O Espírito impele Jesus ao deserto: Ele vai experimentar o Seu messianismo no encontro com o demónio. A salvação está presente na Sua pessoa, por isso Jesus vai reviver no deserto as tentações do Seu povo durante o Êxodo. Jesus afasta todas as tentações, tendo êxito no caminho que outrora o povo tinha falhado. Ele determina-se livremente, diante da opção que lhe é apresentada: recusa um domínio terreno sobre o mundo, já que a Sua missão consiste em anunciar aos pobres a Boa Nova da salvação. Jesus encarna o novo povo de Deus e encoraja-o à luta contra as tentações fundamentais da vida cristã.
Lendo ao ritmo do texto, por versículo:
2 – O número “quarenta” evoca geralmente uma geração. Aqui evoca o tempo que Moisés passou na montanha (Ex 24, 18), a caminhada de Elias (1 Rs 19, 8) ou os quarenta anos de Israel no deserto.
3 a 10 - O que dispara a tentação é a fome, motivo fundamental na experiência de Israel: Deus “fez-te sentir fome” (Dt 8, 3). Este símbolo, desejo de saciedade, é patente. Daí as três tentações fundamentais: a fome de poder económico (v. 3-4), do poder religioso (v. 5-7) e do poder político (v. 8-10).
4 - O Messias pode mudar as pedras em pães, mas segundo a Bíblia, o alimento essencial é a palavra de Deus.
6 – Ninguém porá Jesus à prova por meio de tentações desmesuradas.
7 – “Tentar Deus” está ligado à desobediência dos Seus preceitos, mas aqui o sentido é abusar de Deus para um fim interesseiro. Esta tentação é de natureza política e a mais feroz. O diabo pretende possuir um poder universal ao propor dá-lo a Jesus. Mas Jesus remete para Deus, o único Senhor perante o qual devemos curvar-nos.
11 - O diabo vencido abandona a cena e os anjos vêm alimentar Jesus atestando, por esse meio, a complacência de Deus face a seu Filho. Ao longo da Sua vida, Jesus foi tentado várias vezes, sendo algumas pelos seus amigos: com Pedro em Mt 16, 23, que recusava a cruz para Jesus; Jesus repeliu o poder económico, escapando após a multiplicação dos pães (Mt 14, 22); recusou o poder religioso, aceitando a Paixão; a discussão com os filhos de Zebedeu é reveladora quanto ao poder político (Mt 20, 20-23). Ao receber esta tradição, Mateus pensa na sua própria Igreja, particularmente nos ministros duvidosos que fazem pesar sobre os crentes a sua ambição económica (Mt 7, 15; Mt 10, 8-9), religiosa e política (Mt 20. 21).

A jeito de conclusão, deixo-vos com um enxerto da homília de Santo Agostinho:

Cristo “transfigurou-nos nele. Lemos no Evangelho que o Senhor Jesus Cristo foi tentado pelo diabo no deserto. Isso mesmo! Cristo era tentado pelo diabo! Em Cristo, és tu que eras tentado, porque Cristo recebeu de ti a sua carne para te dar a salvação; recebeu de ti a morte para te dar a vida; recebeu de ti os ultrages para te dar honrarias; portanto, Ele recebeu de ti a tentação para te dar a vitória.”

Santo Agostinho (340-430), Homilia sobre o salmo 60

Um comentário:

  1. É difícil para mim ter mais palavras depois de ler as palavras de Santo Agostinho. Jesus dá-nos a Salvação todos os dias, sofreu ultrages, deu a Sua vida por nós, tudo pelo Amor que tem para connosco, um amor que nos une para sempre ao Pai. Cada vez que comungo, será que me lembro desse amor? Qual é a maior alegria do que trazer comigo o Amor Divino que me dá a Vida? Como valorizo a Eucaristia na minha vida? Como valorizo esta dádiva de vida que Jesus nos dá ao tomar as nossas dores? Sobretudo, sinto que temos todos de abrir a nossa alma e deixar Deus entrar, deixar que o Seu Espírito inunde a nossa vida e a transforme, senão nunca encontraremos a felicidade de estar no Seu Reino ao longo da nossa vida. Por isso, o exemplo de Jesus no deserto é tão importante para nós. Ao ler estas passagens e ao aprofundá-las, percebi que a maior fonte de pecado será, provavelmente, a sede de poder, a insaciedade humana. Esta insaciedade vem do medo que temos do que nos pode faltar amanhã, o que, no fundo, revela uma falta de confiança em Deus. O baptismo de João convida-nos a uma conversão, um abandono total a Deus, com uma abertura e disponibilidade total para que o baptismo de Jesus nos possa forjar pelo fogo do Espírito Santo como Filhos de Deus e conduzir-nos ao Seu Reino de Amor.

    Um abraço a todos!

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